Newsletter da 300Noise #2 - Fevereiro febril: departamento de ineficiência artificial
No clima de Oscar, Carnaval, Resenha do Arrocha, Kung Fu, Emo e Pink Siifu!
Editorial: Fevereiro febril: departamento de ineficiência artificial da 300Noise
Amigos desta oficina de conteúdos e ideias,
Viemos por meio deste dizer que: é inevitável falar de fevereiro de 2025 sem mencionar a loucura generalizada que o governo Trump está promovendo nos EUA. Mas esta é uma newsletter sobre música: o que diabos as duas coisas têm a ver?
Os avanços políticos do governo de Donald Trump e de seu aliado Elon Musk têm feito com que as pautas das big techs e a ampla desregulamentação ganhem força de maneira enfática. Possíveis barreiras legislativas e políticas contra esses grupos foram por água abaixo, especialmente na União Europeia.
A coalizão entre a estratégia ofensiva da direita e a sede de lucro das big techs chegou, claro, ao mundo da música. O governo britânico — supostamente de "esquerda" — promoveu a possibilidade de as big techs usarem músicas protegidas por direitos autorais livremente para o treinamento de IAs. Um grande e sincero foda-se na cara da comunidade artística. Esse foi o tema da nossa última postagem nas redes sociais. E fica o alerta para o nosso querido e amado governo, classe artística e movimentos sociais: sem reação, a gente vai se dar mal.
Sejam bem-vindos à newsletter de fevereiro da 300 Noise, com Resenha do Arrocha, Kung-Fu, EDM genérico, golpes de estado e tudo o mais o que coube no limite do Substack.
Antes, não se esqueça:
Carnaval em disputa: a batalha mercadológica entre Resenha do Arrocha e Descer para BC
Entre a batedeira invertida e o pique do lobo-mau, há um conflito de Brasis
Talvez esse seja o primeiro carnaval em anos em que podemos apontar para uma canção e afirmar que se consagrou hit. E, claro, a percepção pessoal, espaço geográfico, esfera social, idade, etc... tudo isso entra no cálculo. Mas o hit de carnaval tem uma característica principal que acaba aglomerando todos esses elementos: a aderência massiva. E aqui o uso da palavra massiva com o propósito de oferecer um contraponto a outro conceito: o popular.
E se me permitem uma breve contextualização, o pensador colombiano Jesús Martín-Barbero traz uma leitura para explicar a construção do massivo como algo criado com elementos culturais tradicionais (ou seja, o popular) através do processo histórico, da urbanização e, claro, da presença de mediações. E isso tem (ou a gente quer te convencer que tem, rs) uma relação direta com a Resenha do Arrocha, de J. Eskine, o gangster do arrocha.
Voltando ao início: fazia tempo que não tínhamos um hit carnavalesco e talvez a resposta mais objetiva sobre esse fenômeno esteja na mudança de paradigma da indústria musical.
Na dinâmica algorítmica, na construção de campanhas publicitárias e marqueteiras, na busca pelo viral perfeito, o popular se desintegra na própria emulação e a aderência massiva se torna mais dispersa. Fato é que ninguém mede hit carnavalesco por meio de charts, mas sim pelas vozes da rua.
E no caso do Brasil, é ainda mais complicado cravar que o que faz a cabeça do paulista e do carioca estará estourando nos blocos de João Pessoa, ou de Balneário Camboriú (trazendo para você também o exercício de imaginar a folia que acontece naquele cristalino mar da Dubai brasileira).
O ponto é que não faltam tentativas para que músicas caiam nas ruas através da rede, uma difícil conversão e que nem sempre transmite espontaneidade ou identificação popular. Um dos hits de verão, ‘Descer Pra B.C.’, entra nessa equação para exemplificar a diferença entre dois produtos massivos que dialogam com o popular de formas diferentes.
Para começar: tanto Resenha do Arrocha quanto o hit da dupla Brenno e Matheus com o DJ Ari SL foram lançados em novembro de 2024, apenas com 2 semanas de diferença.
Descer Pra B.C. traz o tão falado funknejo (com toques de eletrofunk, afinal DJ Ari SL faz parte desse movimento paranaense), mas coloca mais um elemento discreto na equação: a interpolação de Aserejé, ou, para nós brasileiros, Ragatanga. A faixa carrega elementos presentes da cultura do agronegócio e traz Balneário Camboriú em sua concepção de paraíso liberal de hedonismo e ostentação do cowboy herdeiro. Bem, este frankenstein imagético entrega uma leitura do Brasil e é inegável seu sucesso comercial de curto prazo.
Agora se J. Eskine e Alef Donk colocam seu medley com diversos pagodes baianos, com quase 6 minutos, no ar duas semanas depois que a dupla sulista e continuam vendo sua influência crescer pela internet nas vésperas do carnaval, algo tem.
E não é apenas pela música conter infinitas referências musicais (passinho do romano, joga pro coroa, modinha, etc), regionalismos, frases meméticas, mas também de trazer uma realidade mais palpável para as ruas (afinal, quantas pessoas você conhece que colocam as malas na traseira de uma RAM e vão para o metro quadrado mais caro do Brasil?).
O verdadeiro embate entre os dois hits está no próprio processo de massificação e na forma como as músicas acabam dialogando com sua construção através do popular, seja na sonoridade, nas letras, ou na forma como a internet vai alavancar as reproduções das faixas nas plataformas através de memes e dancinhas. O Brasil do agro e do tigrinho dialogam entre si, mas a representação do povo, ou melhor, dos povos, nessas canções, é conflitante. E no caso do carnaval, já podemos cravar um vencedor... e naipe, e naipe!
Anora e a arte de usar péssimas músicas para criar ótimas narrativas
É temporada dos Oscars e não podemos deixar de falar sobre a premiação e sobre um dos filmes que está entre os favoritos para levar o grande prêmio da noite. Claro, poderíamos falar sobre Ainda Estou Aqui, mas, honestamente, já tem muito conteúdo bom por aí, principalmente sobre a trilha do filme que, claro, é parte fundamental da narrativa. E, por outro lado, o que motiva a falar sobre a trilha de Anora é justamente sua insuportável trilha sonora.
Anora, dirigido por Sean Baker, é um longa que acompanha uma jovem uzbeque-americana que trabalha em um clube de strip-tease em Brighton Beach, bairro que abriga uma vasta comunidade de imigrantes da antiga União Soviética desde a década de 70. Durante seu trabalho, Anny (Anora) conhece um jovem filho de oligarcas russos, Ivan, e passa a viver um romance ‘cinderélico’.
Na primeira metade, durante o desenvolvimento do casal, o filme bombardeia o expectador com um kitsch musical do mais alto (ou baixo) nível. A música que guia essa parte e atmosfera do filme é “Greatest Day” dos ingleses do Take That, mas remixado pelo DJ Robin Schulz (Prayer In C, Sugar, etc).
Para uma parcela da população, a escolha do tema pode se traduzir em “uma vibe indescritível”, mas para a bolha que abre o letterboxd para dar estrelinhas enquanto os créditos rolam, é uma escolha complexa.
E o ponto da trilha sonora de Anora é se apoiar justamente no pastiche, na contraposição entre o fantástico mundo dos milionários e a desgastante vida das trabalhadoras sexuais novaiorquinas. As músicas de Anora constantemente quebram a expectativa cinematográfica, os planos e a fotografia em prol de um toque irônico que engrandece a narrativa principal do filme. E entre o ‘cult’, o piegas e o bom gosto, existe o cômico. Nisso, Anora brilha. Na sonoridade sugerida por trabalhadoras do strip-clube, nas referências russas como T.a.Tu. e Mnogoznaal, no EDM mais genérico possível… tudo descreve a relação mais genérica possível aquilo que, spoiler, não é o verdadeiro romance do filme.
Dicas de leitura
Desligue a televisão e vá ler um livro
Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia, de Jesús Martín-Barbero
A gente já citou ele ali em cima. Para entender mais, olha o pdf que caiu do caminhão. Um clássico para pensar comunicação.
Dance of Days: Duas Décadas de Punk na Capital dos EUA, de Mark Anderson e Mark Jenkins
Leitura indispensável para quem busca se aprofundar no surgimento do hardcore punk e suas transformações até chegar ao emocore. O livro acompanha a trajetória de bandas como Bad Brains, Minor Threat, Embrace, Rites of Spring e Fugazi, construindo uma narrativa imersiva repleta de relatos e fotos sobre a "Revolution Summer". A reflexão sobre o impacto político e cultural da cena de Washington ajuda a entender o gênero como parte de um movimento político, marcado pela luta contra a gentrificaçãona década de 80. Traz uma visão diferente daquela que costuma ser associada ao estilo no Brasil, muitas vezes visto como apolítico e pasteurizado.
Dicas de audiovisual
Feche o livro e ligue a televisão
Trilha Sonora para um Golpe de Estado (Johan Grimonprez, 2h30, 2025)
Documentário absolutamente foda sobre a instrumentalizaçao da música e dos músicos pelos EUA para justificar apoiar movimentos golpistas na África, em especial contra Lumumba. Está nos cinemas mais cults das grandes cidades.
A 36ª Câmara de Shaolin (Lau Kar-leung, 1h55,1978)
Talvez apenas nós da 300Noise ainda não tívessemos assistido o mastodôntico clássico do honconguês que inspirou o primeiro play do Wu-Tang Clan. Mas é um prato cheio para pensar colonialismo, resistência e kung-fu. E depois ouvir Enter the Wu-Tang (36 Chambers).
Zine Design Musical do Brasil ─ 2ª edição
A 300noise fez uma nova impressão da zine DESIGN MUSICAL DO BRASIL.
São 50 cópias físicas do projeto gráfico que celebra e preserva logos de selos e gravadoras do Brasil durante o século passado. Nosso projeto envolveu busca por endereços desativados, digitalização de artes diretamente de discos de vinil e a descoberta de muito material perdido no fundo de sebos e armazéns.
Você pode pedir a sua por aqui!
Claro, disponibilizamos a versão digital em nosso site para você dar uma checada e compartilhar com geral.
Por último, os sons
Whispers - Yom-Ma-Look
No final de 2024, fomos agraciados com este EP dos tailandeses do Whispers. Metal/hardcore na melhor pegada dos anos 90, com elementos modernos de beatdown ou, como eles mesmos denominaram, Bangkok Evilcore. Mostrando a todos que o hardcore é para o mundo todo — ou, como o título sugere, um mundo de pessoas mortas. O álbum conta com participações que vão desde a nova geração, como Jiam Siow, do Speed, até a velha guarda, com Stephen Bessac, do Kickback. Não deixe isso passar despercebido.
Pink Siifu - Black'!Antique
Nesta altura do campeonato, Pink Siifu já se consolidou como um dos rappers mais criativos, experimentais e versáteis no jogo. Seu último trabalho parece uma amálgama de sua discografia: tem industrial, jazz, trap, tudo misturado com boas doses de psicodelia, agressividade, distorções e ambiências sintéticas. É definitivamente um álbum repleto de ideias, com 19 músicas e mais de uma hora de duração. No entanto, algumas ideias se perdem em meio a tantas experimentações. Vale a audição, mas é necessário ter paciência para desvendar todas as suas potencialidades.
Anxious - Bambi
Não tem erro: se você faz parte do seleto grupo de "emos trintando" e não consegue buscar novas bandas que emulam aquele sentimento nostálgico, seus problemas acabaram! Dê play nesse novíssimo álbum do Anxious e seja feliz sem ser piegas. Emo pop de qualidade lírica e instrumental, especialmente quando se presta atenção na bateria. É um respiro para um gênero já tão explorado e que tem sofrido com um revival plástico desde a pandemia.
Febre 90 - Cartier Santos Drummond
A dupla Sono TWS e Puma Plj consegue errar? Sinceramente todo lançamento deles parece inovar mas sempre mantendo o nível. Dessa vez numa batida diferente mas não menos boombap e icônica.
dj blackpower - Dr. Grabba II
Alter ego do rapper MIKE em seus trabalhos instrumentais mais eletrônicos. Muito criativo como sempre, diferente da música eletrônica mais pop, mas menos intenso do que o lançamento anterior, Dr. Grabba I.
Sharon Van Etten - Sharon Van Etten & The Attachment Theory
A mesma Sharon que já conhecemos, mas acompanhada de uma banda recheada de personalidade, sintetizadores e um bom bocado de referências musicais que passam por Bowie, New Order, Siouxsie and the Banshees e muito mais. Discão
Mike - Showbiz!
O queridinho dos entusiastas do rap estranho está de volta com mais um projeto repleto de canções que carregam seu estilo característico: samples sobrepostos e inusitados, cheios de glitches, marcados por batidas discretas que ajudam a criar uma atmosfera hipnótica e etérea. Liricamente, vemos novamente um Mike bastante introspectivo, abordando temas como problemas com drogas, solidão, luto e depressão. Já está entre os melhores álbuns de sua discografia
E por fim…
Agradecemos a sua presença e leitura ao longo. Se cuide neste Carnaval. Convidamos, claro, sempre a se inscrever. Por aqui, já soltamos conteúdos premium, mais aprofundados e com mais carinho. O primeiro passo é se inscrever:
Conhece nossa loja?
Outra forma de ajudar a 300noise é dando um pulo na nossa lojinha! Temos uma coleção que conversa muito com a sensação de desgaste das redes. Afinal, temos que ser um pouco cronicamente offline. [conceito este que também foi utilizado, posteriormente, por uma influenciadora digital famosérrima. mas nós influenciamos antes].