O Brasil não pode continuar sendo uma terra de música isolada
A urgência na reconstrução da identidade musical brasileira.
(Esse é um texto complementar. Como estamos no mês da positividade, entregamos um conteúdo base para tratar desse tema e esse texto para falar sobre outros pontos)
Parte fundamental da identidade musical do Brasil está no século passado. Isso é um problema? Não, o problema está na construção da nossa identidade presente e na forma como temos dificuldade de pensar a produção musical para além de nossas fronteiras. Mas por que?
É importante entender que a globalização sonora é determinante no mercado da música digital. O pop é um estilo que cada vez mais dialoga com sonoridades globais, recortando microelementos e sintetizando estilos de maneira pasteurizada. Podemos pensar nesse diálogo através da forma como o funk é utilizado por alguns artistas como Beyoncé (SPAGHETTII), ou Charli XCX (Everything is Romantic). Essa dinâmica pode vir de algumas formas diferentes: 1 - Contato, experiência ou parceria prévia. 2 – Repertório da equipe técnica por trás da faixa. 3 – Estratégia mercadológica. Ou seja, existe um distanciamento grande entre a referência criativa e o criador dela. Em outras palavras, a sonoridade brasileira é uma forma sem corpo.
Quando o direcionamento de um artista brasileiro mira o exterior, o processo de globalização sonora se inverte e a estratégia passa a incorporar a base de outros estilos em forma de identidade musical. Dificilmente observamos artistas que trabalham uma identidade brasileira fora do país. A exportação musical acompanha reformas sonoras, linguísticas e a criação de uma nova imagem que prioriza símbolo em vez de substância.
Tome como exemplo um artista nacional divulgando uma música em um ritmo regional de outro país, performando em outra língua e inserindo referências culturais que se apoiam no imaginário popular sobre o Brasil. O resultado é o distanciamento de expressões culturais autóctones e o reforço de um reducionismo identitário.
Quando um artista utiliza o Brasil como ponto de apoio para sua música, dificilmente abandona os principais traços de sua identidade “internacional”, funde traços de ritmos brasileiros no cerne criativo e colhe os louros das comunidades atingidas pela música. Esse processo fortalece a hegemonia cultural do Norte Global e define as diretrizes adotadas para se encaixar nesse meio. Afinal, os artistas brasileiros vão estar encaixados, muitas vezes, dentro de empresas (gravadoras, distribuidoras e plataformas de streaming) que obedecem a essa lógica.
Podemos entender esse fenômeno através da estrutura da indústria cultural norte-americana, que possui o alcance midiático de multinacionais, ou pela dificuldade em construir uma indústria nacional capaz de cruzar fronteiras e oceanos, como o k-pop (que também vai ter uma anexação à indústria estadunidense).
O governo da Coreia do Sul não só trabalhou diretamente a difusão de seus produtos culturais, como k-dramas e k-pops, como buscou aperfeiçoar os mecanismos que movimentam esses mercados. Estamos falando de empresas que agenciam artistas, mas também em estruturas e equipamentos do showbusiness, espaços para performance, grade curricular em escolas e instrumentalização da cultura como propaganda governamental.
Se pensarmos na música latina, temos uma base de conexão identitária que supera a própria característica sonora. Bad Bunny traz a mistura de um estilo musical panamenho, que se popularizou em Porto Rico, mas que tem suas raízes na Jamaica. O que se convencionou como “música caribenha” é na verdade uma rede de conexões identitárias baseada em um mesmo processo: a colonização.
O mesmo processo que vai se repetir em nosso samba, por exemplo, mas que não vemos a busca por vínculos com o semba de Angola, por exemplo. Mas afinal, qual gravadora vai se interessar em olhar para Angola, quando pode trabalhar um artista carioca para performar reggaeton em espanhol e tentar capturar ouvintes que, na maioria das vezes, nem estão em solo latino.
Enquanto houver um isolacionismo mercadológico da música brasileira, viveremos sendo reféns de djs gringos roubando pendrives, uso criativo não autorizado, compras de catálogo com a vantagem do pagamento em dólar e uma comunidade criativa tendo que incorporar estrangeirismos para divulgar sua música.