O luto materializado pela arte
Talvez você já tenha se deparado por aí com a notícia de que Nick Cave está produzindo esculturas de cerâmica. Embora a notícia tenha sido compartilhada por muitas pessoas com um tom jocoso meio “vou largar tudo e vender minhas artes na praia”, até mesmo pelo estilo visual desenvolvido por Cave remeter à arte naïf que muitas vezes é julgada pela sociedade como uma expressão artística inferior - Contextualizando, arte naïf, sinônimo de arte ingênua, é o termo que geralmente representa a produção popular, a produção artística de autodidatas que não têm formação culta nas artes visuais. -, a história por trás dessas estatuetas e o poder visual e emocional que elas carregam é muito maior que um hobby.
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Cave, 67 anos, é conhecido por ser cantor e compositor, mas para além de sua carreira musical ele é também autor, pensador, roteirista e agora também artista visual. E foi justamente nas artes visuais que o músico iniciou seus estudos acadêmicos nos anos de 1970, mas não chegou a se graduar e optou por se dedicar à música com sua banda Birthday Party, na época. Uma curiosidade sobre essa relação de Cave com o curso é que em 2008 ele recebeu o título honorário de “Doctor of Laws” da mesma universidade onde estudou, a Monash University. E um adendo: antes mesmo de ir para a universidade, quando era adolescente, o músico fez um breve curso de cerâmica e sua mãe amou tanto as estatuetas produzidas que decorou a casa com essas figuras desde então.
Apesar de algumas matérias a respeito desse curioso lado do músico estarem se espalhando com maior intensidade nas últimas semanas, o processo de criação começou em 2020, durante a pandemia e após o falecimento de sua mãe, Dawn Cave. Na última década, o artista passou por perdas de pessoas muito importantes para ele e inevitavelmente o luto teve uma forte presença em suas criações recentes, seja na música ou na cerâmica.
Em 2015, Cave perdeu seu filho Arthur que na época tinha apenas 15 anos de idade e em 2022 seu filho Jethro faleceu com 31 anos. Sem dúvidas a perda de Arthur o marcou profundamente e reverberou nos álbuns “Skeleton Tree”, “Ghosteen” e “Carnage”. Para além da música, a perda de Dawn e de Jethro infelizmente adicionaram novas camadas aos sentimentos que moldaram as criações tridimensionais do artista.
Em uma entrevista para “The Guardian” Nick Cave diz a respeito das esculturas:
“In the end, the ceramics are a story about a man’s culpability in the loss of his child, and addressing that in a way I wasn’t really able to do with music. That’s what happened without any intention.”.
Em uma tradução livre ele disse: "No final das contas, as cerâmicas são uma história a respeito da culpabilidade de um homem pela perda de seu filho e abordam esse tema de uma maneira que eu não pude fazer com a música. Foi isso o que aconteceu sem nenhuma intenção.”.
A série de cerâmicas criadas por Cave tem como título “The Devil - A Life” e é composta por 17 estatuetas esmaltadas a mão que contam a história do diabo como um personagem que vivencia as vicissitudes da vida de maneira bastante humana, transicionando da inocência à experiência. As figuras são inspiradas nas cerâmicas “Staffordshire ‘flatback’” populares durante a Era Vitoriana, peças históricas pelas quais o próprio Cave é fascinado e colecionou durante anos. Essas cerâmicas antigas são chamadas “flatbacks”, pois em geral eram produzidas na época para serem posicionadas sobre prateleiras da casa ou no espaço acima da lareira, de modo que eram esculpidas e esmaltadas apenas na parte frontal e nas laterais, uma vez que a parte posterior não ficaria visível.
Outra influência artística dessa série foi o uso da cor, Cave partiu da ideia de trabalhar com um esmalte para cerâmicas na cor vermelha para desenvolver a narrativa. Inspirando-se também no pensamento de cor como forte símbolo utilizado pelo pintor expressionista norueguês Edvard Munch, o músico começou associando o vermelho ao diabo. O interesse do artista pelo diabo expressa a relação dele com a religião e a espiritualidade, uma relação que é um misto de crença e ceticismo. Esses sentimentos antagônicos são para ele semelhantes aos conflitos inerentes ao fazer artístico, uma busca que transcende a racionalidade pura.
A narrativa e a abordagem de personagens míticos e religiosos não é algo recente no trabalho de Nick Cave, suas músicas muitas vezes contam histórias e apresentam figuras do Velho Testamento, Mitos Gregos e do sul dos Estados Unidos. Quando não está compondo canções, o artista cria narrativas em outros suportes, seja fazendo fotografias instantâneas com sua Polaroid; colagens em seus cadernos com cabelo, imagens religiosas e itens encontrados em feiras de antiguidades; desenhando e pintando e também criando esculturas.

Apesar de ser um tema denso e complexo, Nick Cave parece ter encontrado maneiras de alguma forma leves de lidar com o luto. Ele diz que foi fundamentalmente transformado e que uma das mudanças foi que ele passou a apreciar mais a vida, também pelo fato de que ele costumava temer que seus filhos falecidos se culpassem pelo sofrimento dos pais. Além da música e das artes visuais, esse processo de luto gerou também a página virtual Red Hand Files, na qual o músico convida seus fãs a enviarem perguntas sobre o que quiserem, muitas bastante pessoais inclusive, às quais ele responde sempre com uma imagem e um texto sensível.
O fazer artístico foi parte dessa transformação do luto em algo mais leve, mas Cave enfatiza que ele seria a última pessoa a dizer que a arte é terapêutica, pois a arte para ele não está a serviço do prazer pessoal dele ou para fazer com que ele se sinta bem.
Links úteis:
https://enciclopedia.itaucultural.org.br/termos/80191-arte-naif
https://www.munchmuseet.no/en/edvard-munch/
https://www.interviewmagazine.com/music/nick-cave-takes-us-on-a-tour-of-his-creative-universe