Editorial: Um março para olhar para o passado
Neste mês, em especial no fim dele, o grande destaque no meio do A&B é o Lollapalooza. Nós não vamos comentá-lo nesta newsletter, mas você pode dar uma olhada nos dados que nós extraímos do festival, que estão disponíveis aqui para nossos assinantes (Queremos que vocês conheçam nosso trabalho de pesquisa através de um valor simbólico). Em breve, quem sabe, se estivermos de bom humor, abrimos para geral.
Mas se você não é inscrito ainda, quem sabe?
Dito isso, a 300Noise decidiu retornar ao macaco olhando para o futuro e fazer uma série de conteúdos sobre mídia física, que julgamos importantes para compreender os movimentos envolvendo novas antigas formas de relação com música que estamos desenvolvendo enquanto nos despersonalizamos no mundo digital.
Nesta edição, vamos nos aprofundar um pouco neste vibe nostálgica, mas também falar sobre outras memórias do passado, como a memória da ditadura militar brasileira. Como sempre, também estarão presentes sobre nossas dicas culturais e bons lançamentos que rolaram no nosso mês.
Sim, é um março cheio de história. Mas história é sempre importante para olhar o futuro, não é mesmo? Bora lá:
O CD como janela do passado-presente-futuro
Nas últimas semanas estivemos envolvidos em uma discussão sobre mídias de consumo musical e trouxemos algumas diferenças entre o vinil, a fita cassete e o CD. Particularmente, esse tema nos traz um interesse mais conectado com a forma de compreender música, fator este que está diretamente vinculado com o nosso consumo.
Dentre as mídias, o CD parece sintetizar algo ainda mais importante: a fragmentação da realidade invadindo a música. E para entender isso, precisamos entender o funcionamento desse pequeno objeto que, mesmo que teimem, não atingiu sua obsolescência. Se você nos acompanha a mais tempo, sabe sobre a crescente desconfiança aos streamings e também da necessidade de colocar a música no mundo físico. O CD entra nessa conta como um objeto extremamente barato. Em síntese, enquanto alguns nichos estarão investindo alto em prensagem de vinil, o cd estará sendo uma válvula de escape para a proliferação musical. Tudo depende do público, tudo depende da forma como a música é consumida. Se engana quem pensa que o Spotify é referência formato de consumir música no Brasil.
No final de contas, o CD é uma mídia que está inserida entre o mundo físico e o digital. Um objeto que dá controle de seleção musical, pois não está gravado em uma magnetização que acompanha uma fita nem em sulcos gravados em plástico.
Este pedaço de plástico metalizado transforma as ondas físicas em sequências de zeros e uns. Um objeto que, para muitos, não representa apenas um objeto musical, mas também um extensor digital, através de arquivos. Jogos, softwares, dados, fotografias, texto. Um extensor e ponte de conexão entre realidades.
E olhar em retrocesso nos ajuda a compreender o entusiasmo em torno do objeto e, posteriormente, a preocupação do mercado musical em descobrir a fragilidade do controle dentro da internet. As possibilidades do mundo virtual eram infinitas. Uma terra sem controle de algoritmos e como a criação de comunidades virtuais centradas em interesses em comum, discussões e compartilhamento de dados (músicas, fotos, documentos, livros, etc).
A música se tornou apenas mais uma nomenclatura de dados, o MP3. A nossa inclusão dentro dessa tecnologia nos coloca como ‘sociedade em rede’ (termo do holandês Jan van Dijck e repensado pelo espanhol Castells). Uma sociedade mediada pelas tecnologias, que encurta tempos e distâncias, mas também atua diretamente na fragmentação do indivíduo e dependência cotidiana dessa nova realidade. Sabe aquela conversa de estarmos presos em uma bolha em determinados cantos da internet? Bem, o funcionamento virtual sempre foi assim. O CD foi pensado na lógica virtual, se adequou a essa necessidade para fazer parte do mundo globalizado e da tal Aldeia Global de Mcluhan.
Olhar para essa integração do físico com o digital já é uma forma de nostalgia para gerações que tiveram o contato com CPUs, lan houses, CDs acoplados em caixas de cereal, DVDs do Capypso vendidos no terminal de ônibus e uns bons Trojan Horses vindo de brinde ao baixar o Meteora do Linkin Park pelo Limewire. E se hoje a música tenta retroceder imageticamente para uma internet crua e longe do trumpismo abraçado por Metas e neonazistas, é porque nela se encontra uma matrix perdida, um simulacro de esperança inalcançável. Uma ideia tão interessante que se transforma em extensão, fundindo os jogos de CD-Rom com músicas distribuídas para o streaming, o fruitiger-aero, com a realidade aumentada e a Inteligência artificial, com faixas analógicas em processo de remasterização.
A música não precisa ser só música
Embalando nessa discussão sobre a internet do começo dos anos 2000 e na forma de consumir a música em múltiplas interfaces, talvez seja interessante você conhecer dois projetos que não foram tão bem divulgados, mas que certamente são muito interessantes para tratar de imersão, nostalgia, conexão e expansão da narrativa.
1. Imaginal Disk World de Magdalena Bay (https://imaginaldisk.world/map)
Se você ainda não ouviu esse álbum, bom, vá ouvir. Ele foi nosso álbum do ano (internacional) de 2024 a lista completa você vê aqui. Nesse site você vai ter uma experiência recheada de detalhes e nostalgia. É como um jogo, mas também como um playground para o universo desse álbum.
2. Soul-Net e FIBW do DIIV (https://www.soul-net.co/) e (https://fibw.org/)
Um dos grandes discos de shoegaze de 2024 trouxe também dois sites para divulgação dos singles que ampliam a temática da banda e as super pertinentes discussões sobre a crise do capitalismo tardio, as mudanças climáticas e a ascensão da extrema-direita. O site traz uma confusão visual maravilhosa, muito teor conspiratório e teoria marxista. (o Sou-Net claramente tem uma inspiração no famoso Cameron’s World (https://www.cameronsworld.net/) e na honestidade, se você não conhece, não deixa de clicar nesse hyperlink e em todos os milhares de hyperlinks dentro dele que estão presentes ao longo da scrollada infinita).
Das coisas não podemos esquecer
Neste dia 1 de abril, se marcam os 61 anos do golpe militar de 1964. No dia da mentira.
Mas vale também falar da verdade: durante a ditadura militar empresarial a arte foi um dos principais vetores para a luta política.
Mas consumo da arte produzida nesta época as vezes não passa toda o contexto de repressão e os reais perigos de expressar algum tipo de revolta. Às vezes, em nossa aparente normalidade, a ditadura aparece como algo resolvido durante a democratização e a arte desse contexto como um conto de fadas, em que a malandragem conseguia fugir facilmente da repressão.
E por isso, vale lembrar um pouco da história d’O Banquete dos Mendigos, de Jards Macalé, e de como realmente era produzir arte clandestina.
Em 1973, a ditadura enfrentava um dos momentos de maior resistência mas também de maior violência. No campo e nas cidades os heróis guerrilheiros eram assassinados, e qualquer tipo de informação era censurada, inclusive grandes obras da música brasileira.
Foi neste momento histórico que Jards Macalé uniu ONU e MAM no Rio de Janeiro para “comemorar” os 25 anos da declaração universal dos direitos humanos (quer coisa mais subversiva para os militares que os direitos básicos de todo ser humano?). Ai nasceu o show histórico “Banquete dos Mendigos” com artistas como Edu Lobo, Raul Seixas, Paulinho da Viola, Chico Buarque, MP4, Gal Costa, Dominguinhos e muitos outros.
Entre as músicas do show, o escritor Ivan Junqueira declamou alguns dos diretos humanos contidos na carta da ONU, passando pelos tópicos da tortura e do exílio ao som de um plateia que demonstrava ódio e nojo a ditadura.
Os agentes da repressão souberam do evento, colocando policiais à paisana e censores dentro do show fazendo de tudo para que não houvesse uma gravação da apresentação.
Ao final da apresentação, o exército cercou com tanques o MAM tentando intimidar o público de 5 mil pessoas.
Os técnicos de som da apresentação conseguiram salvar as fitas da apresentação, sendo organizada um LP que foi lançado em seguida mas censurado. Somente em 1979, com muita ação de Jards Macalé e depois da abertura “lenta, gradual e segura”, o LP seria lançado.
A história do lendário Banquete dos Mendigos, é importante lembrar, é relativamente feliz. O material foi lançado e o show driblou a repressão. Quantos não seguiram a mesma história? Quantos artistas e materiais não se perderam para sempre?
Nesta semana em que o governo militar de Jair Bolsonaro finalmente passa a ser réu por uma parte de seus crimes é fundamental afirmar com toda certeza: o legado da ditadura militar, seu projeto nefasto e os parasitas militares, continua muito vivo. Sem anistia!
Saia de algum lugar e vá fazer alguma coisa, como por exemplo…
Ler um livro: Dicionário da História Social do Samba, de Nei Lopes e Luiz Antonio Simas
Um clássico essencial para entender a cultura brasileira, escrito pelas mãos talentosíssimas de Nei Lopes e Luiz Antonio Simas, vale sempre a revisita para não esquecermos jamais do que nos compõe como país. Sim, estamos emocionados.
Assistir uma série: White Lotus, terceira temporada
Todo mundo que vive na internet sabe de White Lotus e provavelmente se engajou de alguma maneira com a série. Mas a recomendação aqui vai para a selecionadíssima trilha tailandesa da série, que foi compilada com algumas adições nesta playlist do Spotify.
Zine Design Musical do Brasil ─ 2ª edição
A 300noise fez uma nova impressão da zine DESIGN MUSICAL DO BRASIL.
São 50 cópias físicas do projeto gráfico que celebra e preserva logos de selos e gravadoras do Brasil durante o século passado. Nosso projeto envolveu busca por endereços desativados, digitalização de artes diretamente de discos de vinil e a descoberta de muito material perdido no fundo de sebos e armazéns.
Você pode pedir a sua por aqui!
Claro, disponibilizamos a versão digital em nosso site para você dar uma checada e compartilhar com geral.
Por último, os sons
The Magic Triangle - Trapo Casual
Jazz bem inventivo de uma banda nova que chegou para nós pelo Groover. Banda com membros de Canadá, Chile e Equador, tem muito potencial.
FBC, ogoin, Linguini, Nathan Moraes, Pepito - O que nos impede
União sinistra de nomes importantes de MG em um boombap bem feito. Infelizmente é um single solto, mas só do FBC estar na rima e ogoin completar no refrão já vale a pena ouvir
Hesse Kassel – La Brea
Debut da banda chilena que veio para acolher os órfãos do antigo Black Country, New Road. Um disco com diversas camadas, densidade, experimentações e uma boa dosagem de melancolia, sabendo explodir nos momentos certos. Discão do começo ao fim.
Huremic – Seeking Darkness
Pérola do artista por trás do projeto Parannoul e, talvez, melhor trabalho de carreira. Nesse projeto, o foco é post-rock, kraut e passagens bem puxadas para o noise e psicodélico. Quer algo fresco pra ouvir? Quer um projeto bem nerd e que atingiu o 1 do chart do RYM, vai nessa!
Tubo de Ensaio – Endofloema
Sempre bom ouvir bandas brasileiras de música alternativa que não enlatam seu som. Ousado, colorido, cheio de personalidade e referência. Endofloema entrega um disco que precisa ser consumido pelos fãs de rock progressivo e por aqueles que não aguentam aquela cópia da cópia da cópia de fulano ou ciclano. Sem sax, sem flauta, sem guitarrinha fazendo plaun plaun plaun. Lindo.
Whitechapel – Hymns of Dissonance
Grandioso retorno às raízes após uma interessante fase de experimentações – e nem de longe soa como uma dívida sendo paga aos fãs das fases antigas. A escrita das músicas é bem coesa com a proposta, os riffs são criativos, e os breakdowns mais pesados que uma manada de elefantes. Ótima celebração das origens sem ser pedante.
Brother Ali – Satisfied Soul
O subestimadíssimo rapper de Minnesota reencontra-se com o produtor Ant para entregar uma coleção de sons com reflexões e provocações sobre a vida, seus desafios e conexões espirituais. Tudo isso à base de samples vindos direto dos discos mais groovados, dançantes e contemplativos disponíveis. Consistente e exatamente divertido do jeito que só Brother Ali consegue fazer.
Yazz Ahmed – A Paradise in the Hold
Ahmed ficou conhecida por sua participação na faixa "Bloom" do Radiohead e hoje se consolida entre um dos nomes mais fortes desta nova leva de jazz vinda do Reino Unido. Seu quarto álbum reflete suas raízes árabes e debruça-se sobre suas experiências no Golfo Pérsico. Literalmente uma viagem inspirada em personagens do épico Gilgamesh, histórias de caçadores de pérolas e elementos da música folclórica do Bahrein. As performances são absurdas, os ricos arranjos complementam-se com ritmos hipnóticos e elegantes melodias vindas do Oriente Médio. Será o melhor do ano?
Cloakroom – Last Leg of the Human Table
Está cansado do seu shoegaze genérico, cheio de efeitos e composições tediosas? Chega! Seus problemas acabaram, pois o Cloakroom lançou seu quarto e mais diverso álbum. Aproveite o melhor do grunge-gaze-dreamy-pop-core: energia e atmosfera, melódico e pesado, tudo na medida certa. Não poderia ser melhor – difícil mesmo será lançar outro álbum à altura deste.
E, por fim:
Gostou deste mês mais histórico da 300Noise? Acreditamos piamente que todo mundo tem direito de ficar um pouquinho nostálgico de vez em quando. Especialmente para se revoltar com o presente.
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